No intento de retomar gradativamente as atividades econômicas e garantir a prática de atividades esportivas ao ar livre, normais estaduais e municipais inauguraram um novo conflito federativo. Diante de decisões conflitantes no Judiciário estadual, este artigo defende a orientação adotada pela jurisprudência e pela doutrina do Direito Ambiental na distribuição de competências dos entes federativos.
As providências das autoridades públicas para o enfrentamento à COVID-19 têm gerado embates acalorados entre visões de mundo e posicionamentos políticos diferentes sobre qual seria a “medida adequada” de intervenção estatal para lidar com a pandemia; através da atuação de instituições como o Ministério Público, partidos políticos e a OAB, deságua na arena judicial a disputa pelo sentido da norma[1], nomeadamente, sobre a interpretação da competência legislativa dos entes federados na matéria.
No Brasil inteiro o poder Judiciário vem julgando conflitos entre estados e municípios, em casos onde decretos municipais estabelecem regras mais flexíveis que a norma estadual; para citar alguns: Presidente Prudente-SP[2], Diadema-SP[3], Ribeirão Preto-SP[4], Cravinhos-SP[5], Parnaíba-PI[6], São Jerônimo-RS[7], Sapiranga – RS[8], Brusque-SC[9], entre outros.
Para permanecer com destaque em nossa região, importa-nos focar num episódio ocorrido em 16 e 17 de abril, nas cidades de Balneário Camboriú[10] e Itapema[11]. A despeito de restrições que os Dec. Estaduais 525/2020 e 562/2020[12] estabeleceram quanto à circulação de pessoas em praias e o funcionamento do comércio, os referidos municípios publicaram decretos permitindo a prática de esportes na orla da praia e reabertura de restaurantes, padarias e similares – condicionadas à operação reduzida, uso de máscaras, disponibilização de álcool em gel, etc. Ou seja, relativamente à norma estadual, os municípios estabeleceram regras mais flexíveis.
Em ambos os casos, os representantes do Ministério Público Estadual das referidas cidades solicitaram a suspensão dos efeitos dos decretos em sede de tutela antecipatória. Ambos pedidos foram indeferidos em primeiro grau e, até o momento (22/04/2020), sabe-se que, em 19 de abril de 2020, o TJSC acolheu Mandado de Segurança impetrado pelo parquet visando a suspensão dos efeitos do decreto municipal de Balneário Camboriú, sob o argumento de que “os municípios não podem flexibilizar aquilo que o Estado restinguiu. Qualquer norma de redução da saúde é indevida e inconstitucional. Os princípios da prevenção e da precaução se impõem para a proteção da saúde”.
Este artigo realizará a análise dos argumentos centrais utilizados, oferecendo em seguida um contraponto à posição dos Municípios e um endosso ao entendimento do Ministério Público Estadual.
Os argumentos preponderantes para defender a legitimidade dos entes federativos municipais para fixar medidas relativamente mais flexíveis foram a necessidade de atentar para o interesse local e o recente julgamento da ADI 6341. Por decisão unânime, ao fixar interpretação conforme do art. 3º, §9º da Lei 13.979, a nossa corte suprema destacou que o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre serviços públicos e atividades essenciais, desde que preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do art. 198, I da CRFB/88.
Nas palavras do Min. Alexandre de Moraes, “[n]ão é possível que a União queira ter monopólio da condução administrativa da pandemia. É irrazoável”; o Min. destacou também ser necessário atentar para a ideia de predominância de interesses. No mesmo tom, manifestou o Min. Lewandowski: “[j]á foi sublinhado aqui com muita precisão que estados e municípios não podem ser alijados nesta batalha porque eles têm o poder, o dever de atuar”.
Para as respectivas decisões judiciais em primeiro grau mencionadas, a iniciativa dos municípios de dizer quais sãoa atividades essenciais em seu território ocorre dentro da sua competência para fixar normas sobre interesse local. Neste contexto, as decisões levaram em conta a fundamentação dos atos normativos municipais; isto é, levaram em consideração se as normas em questão, visando demonstrar a peculiaridade local, ofereceram justificativas consistentes para promover a flexibilização das restrições impostas pelo estado de Santa Catarina.
Por fim, com relação à alegação de que as normas municipais poderiam ser apenas mais restritivas -- e não menos restritivas --, ambas decisões judiciais ressaltaram não existir disposição legal neste sentido.
Antes de mais nada, é necessário advertir que não se desconhece existirem boas razões jurídicas para defender as normas municipais. Contudo, com toda reverência indispensável no (e própria do) diálogo jurídico, nos parece ser necessário observar mais um aspecto na interpretação das competências dos entes federativos na matéria do cuidado à saúde pública: a de que em competência concorrente, a exemplo do que a jurisprudência já orientou quanto à divisão de competências em matéria ambiental, é necessário respeitar as medidas mais protetivas fixadas em norma geral, uma vez que cabe aos estados e municípios estabelecerem normas complementares ou suplementares.
Vejamos: (i) a premissa básica da competência concorrente é de que se parte do geral para o particular (ou: peculiar). Afinal, no federalismo brasileiro, a fixação de regras gerais cabe à União, cabendo a entes federativos complementarem e suplementarem a norma geral. Trata-se da repartição vertical de competências, aplicável à matéria que ora tratamos
A segunda premissa é: (ii) segundo mencionado no julgamento da ADI 6341, deve-se atentar a predominância do interesse na atividade legislativa dos entes federados. Ou seja: o estado deve atender às peculiaridades regionais e os municípios, às peculiaridades locais.
A terceira premissa é de que: (iii) flexibilizar uma medida restritiva imposta pelo fixador de norma geral, equivale a contradizer a norma geral; isto porque, uma medida flexibilizadora é uma medida “menos protetiva” do bem jurídico a que se pretende amparar (no caso, a saúde).
Dito isto, entendemos que a edição de norma municipal que restringe menos que a norma estadual em matéria do combate à pandemia de COVID-19 (i), ainda que realizada visando atender a peculiaridades locais (ii), equivale a estabelecer medidas menos protetivas à saúde pública (iii). Logo, a norma municipal desrespeita a dinâmica da divisão de competências dos entes federativos na matéria de proteção à saúde.
Daí pode-se concluir, salvo melhor juízo: os municípios poderiam, com base em peculiaridades locais, fixar regra mais protetiva à saúde; porém, jamais menos protetiva. Como percebemos, tal conclusão não necessariamente deve constar em disposição legal expressa, uma vez que deflui da lógica subjacente da teoria da distribuição das competências federativas.
Finalmente, cumpre fazer referência à jurisprudência do STF quanto à competência federativa em matéria ambiental. Em especial, importa a referência à ADI 3547, que tratou da aplicabilidade de norma ambiental estadual em face de norma federal, em voto do Min. Alexandre de Moraes:
“Observada ainda a discrepância com o critério veiculado na legislação federal, ve-se que a lei estadual incorreu em invasão de competência da União para estabelecimento de normativas gerais sobre meio ambiente, optando por método menos protetivo e incompatível com a normatização geral editada em nível nacional para a matéria [...]
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 182, §3º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. CONTRARIEDADE AO ARTIGO 225, §1º, IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. A norma impugnada, ao dispensar a elaboração ou reflorestamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado inciso IV do §1º do artigo 225 da Constituição Federal. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo constitucional catarinense sob enfoque. (ADI 1086, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2001, DJ de 10/08/2001).
A jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL registra precedentes em que se preservou a validade de normas editadas por Estados e Municípios, como no julgamento do RE 194.704 (Rel. Min. Carlos Velloso, redator para acórdão Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, DJe de 16/11/2017). Admite-se que os entes parciais da Federação editem normais protetivas ao meio ambiente, com fundamento em suas peculiaridades regionais e na preponderância de seu interesse. Cumpre destacar, no entanto, que a coexistência de normas de diferentes níveis federativos sobre proteção ambiental se mostra possível na particular hipótese em que os entes subnacionais incrementam o patamar de proteção ambiental firmado pela legislação federal."
O STF se manifestou nesse sentido também no julgamento de ações de controle concentrado que trataram do uso controlado do amianto crisotila (asbesto branco), o qual envolveu o reconhecimento da legitimidade dos estados de impor medidas mais protetivas que a lei federal 9.055/95 (diante da permissividade da lei federal para o uso controlado do amianto, diversos estados federativos publicaram leis mais rigorosas, banindo o uso do material)[13].
Em matéria de competência dos entes federativos, a maior parte da doutrina do Direito Ambienta defende que a norma geral serve como standard de proteção ambiental ou piso legislativo mínimo, conforme leciona Pedro Niebuhr[14]:
[...] em matéria ambiental, a norma geral funciona como um mínimo de proteção. Nesse âmbito, mais que suprir lacunas ou detalhar a norma geral, a competência suplementar autoriza aos estados e os municípios a reforçarem este mínimo de proteção geral, no âmbito dos seus respectivos territórios. O entendimento supra é aceito por parcela majoritária da doutrina em Direito Ambiental que reconhece, diante do exposto, a possibilidade de os estados-membros, no exercício da competência suplementar, editarem normas mais protetivas em matéria ambiental (no que se inclui, acrescentamos, o reforço ou ampliação do âmbito de proteção das áreas de preservação permanente). É a posição de Édis Milaré, Celso Antonio Pacheco Fiorillo, José Rubens Morato Leite, Guilherme José Purvin deFigueredo Amado, Luis Paulo Sirvinskas, entre outros. Apesar da ausência de um posicionamento expresso do STF neste sentido [...] em diversos julgados, os Ministros da Suprema Corte já sustentaram referida posição em votos esparsos. Foi nesta perspectiva, por exemplo, o voto do Ministro Sepúlveda Pertence nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.086-7/SC: [...] Não pode a Constituição Estadual, por conseguinte, excetuar ou dispensar nessa regra [elaboração de estudo de impacto ambiental nas áreas de reflorestamento], ainda que, dentro de sua competência supletiva, pudesse criar formas mais rígidas de controle. Não formas mais flexíveis ou permissivas. (STF, ADI 1086-7/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão.) Foram nessa linha, também, os votos dos ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Medida Cautelar) n. 3937/SP.
É com base nesta premissa -- a qual tem raízes na jurisprudência e doutrina do Direito Ambiental -- que nos parece razoável considerar que, em matéria da proteção à saúde, deve-se tomar como critério para fixação de competência dos entes federados a ideia de que a norma geral estabelece um “piso” normativo, cabendo ao ente federativo imediatamente abaixo (no caso, o Município) suplementar a norma de acordo com suas peculiaridades locais, sempre de forma mais protetiva à saúde.
A conclusão alcançada coincide com o posicionamento do MPSC, aderido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina; a breve exposição se prestou para reforçar a necessidade de se compreender a repartição de competências em matéria de defesa de saúde a partir da mesma lógica que o STF e a doutrina utilizam em questões de direito ambiental.
Por fim, e não menos importante, é válido ressaltar que no julgamento da ADI 6.341 o STF esteve diante de um contexto fático que deve ser levando em conta para a leitura das manifestações dos Ministros. É sabido que governo federal sinalizou impor em todo país a flexibilização das medidas de enfrentamento à pandemia (inclusive, é nestas circunstâncias que a ADI em comento foi ajuizada – e nos debates de plenário houve falas reconhecendo tal fato). Isto é importante pois, do ponto de vista da interpretação de precedentes, deve-se ter em conta especialmente o contexto fático envolvido, evitando-se aderir a enunciados isolados como se fossem eles dotados de generalidade e abstração.
Por exemplo, quando o Min. De Moraes afirma que não é razoável que a União queira ter “monopólio da condução administrativa da pandemia”, ele o faz dentro de um contexto fático onde a União pretendia impor medida mais flexível a todos entes federados contidos em seu território (DF, estados e município). Ou seja, o STF não defendeu a possibilidade de os municípios e estados fixarem, dentro de suas respectivas competências, medidas menos protetivas.
Estes tempos de pandemia impõem dilemas que instigam a reflexão dos vários agentes públicos imbuídos de poder decisório acerca de qual seriam as medidas mais adequadas do ponto de vista prático – visando, evidentemente, adequar a proteção à saúde com o mínimo desenvolvimento econômico.
Alguns dirão que o Direito, como sempre, chegará “atrasado” e provavelmente não será o campo do conhecimento que irá resolver os problemas mais urgentes deste momento (amaldiçoadamente) histórico; e que a questão, ao fim e ao cabo, é política.
Porém, ainda que isto seja verdade, também é importante reconhecer que, dentro de um Estado Democrático de Direito, a discussão jurídica é o instrumento por meio do qual os agentes políticos disputarão o sentido das normas jurídicas nas cortes – especialmente numa questão em que o governo federal, a quem caberia coordenar de maneira mais clara a atuação dos estados (a exemplo da atuação do governo americano, que criou um plano para coordenar os estados na retomada da economia), queda-se pouco ativo.
A importância de chamar atenção para o tema decorre, especialmente, de duas possibilidades. Uma, que a ocorrência deste tipo de conflito federativo seja tendência em todos os estados do país, não somente em Santa Catarina; e outra que, consequentemente, o STF seja novamente chamado para resolver e, quem sabe, diante do “vácuo de poder”, estabelecer critérios objetivos para resolução de um conflitos tão complexos.
[1] Emprega-se a expressão “disputa pelo sentido da norma” conforme a obra “Como decidem as cortes?”, de José Rodrigo Rodrigues. RODRIGUES, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). 1ª Ed. 2013. p.181. [2] [https://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao/noticia/2020/04/27/justica-suspende-abertura-do-comercio-de-presidente-prudente-e-determina-que-municipio-cumpra-decreto-estadual.ghtml] [3] [https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/24/justica-de-sp-proibe-relaxamento-da-quarentena-em-diadema-no-abc.ghtml] [4] [https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2020/04/28/justica-revoga-decreto-para-reabertura-de-saloes-clinicas-e-prestacao-de-servicos-em-ribeirao-preto-sp.ghtml] [5] [https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2020/04/27/justica-suspende-reabertura-gradual-do-comercio-em-cravinhos-na-pandemia-do-novo-coronavirus.ghtml] [6] [http://www.amapi.org.br/juiza-suspende-decreto-de-prefeito-e-proibe-reabertura-do-comercio-de-parnaiba/#.XoC1Zce6TaM.whatsapp] [7] [https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2020/04/justica-suspende-decreto-que-permitia-abertura-do-comercio-em-sao-jeronimo-ck8vijo6h022l01ntd55009r1.html] [8] [https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2020/04/justica-suspende-decreto-que-liberava-abertura-do-comercio-em-sapiranga-ck9eutm2p00s2017num68k19y.html] [9] [https://www.nsctotal.com.br/colunistas/dagmara-spautz/liminar-suspende-decreto-da-prefeitura-de-brusque-e-impede-abertura-do] [10] [https://leismunicipais.com.br/a/sc/b/balneario-camboriu/decreto/2020/987/9873/decreto-n-9873-2020-revoga-em-seu-inteiro-teor-o-decreto-municipal-n%C2%BA-9836-de-19-de-marco-de-2020] [11] [https://leismunicipais.com.br/a/sc/i/itapema/decreto/2020/3/28/decreto-n-28-2020-define-as-atividades-fisicas-individuais-como-essenciais-no-ambito-do-municipio-de-itapema-e-da-outras-providencias?q=28] [12] [https://www.diariomunicipal.sc.gov.br/arquivosbd/atos/2020/04/1587175655_decreto_calamidade_pblica.pdf] [13] ADI 4.066, ADI 3.356, ADI 3.357, ADI 3.406, ADI 3.470, ADI 3.937 e ADPF 109. Embora a solução da corte tenha sido pela declaração de inconstitucionalidade da própria lei federal (i.e., banindo definitivamente o uso do amianto em todo território nacional), os Ministros fizeram menção à competência dos estados em diversos momentos. [14] NIEBUHR, Pedro Menezes, Manual das áreas de preservação permanente. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 48.
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