Nesta coluna de opinião, o advogado Roberto Brasil Fernandes, um dos mais importantes especialistas em aspectos jurídicos do setor e autor do livro “Direito das Loterias no Brasil”, comenta a publicação do acórdão do STF que acaba com o monopólio da União na exploração de modalidades lotéricas. Incansável defensor da autonomia estadual, Brasil Fernandes acredita que apesar da decisão da Suprema Corte, os municípios não terão a mesma prerrogativa.
Escrito por:
Roberto Carvalho Brasil Fernandes Alexandre Amaral Filho Rafael Biasi
Para Games Magazine Brasil
Acordão do STF publicado ontem (15/12/2020) é um documento histórico para as Loterias dos Estados e do Distrito Federal. Trata-se da materialização do julgamento da ADPF 492 (RJ), ADPF 493 (ABLE) e ADI 4986 (MT), no qual se resgatou a competência dos mencionados entes federativos para exploração de loteria e, por consequência, se promoveu uma descentralização na organização política e distribuição do poder no mercado de Loterias.
O julgamento da ação que tramitava na Corte desde o ano de 2017, declarou não recepcionados os dispositivos Art. 1º, “caput” e §1º art. 32 do DL 204/67, que fixavam como “serviço público exclusivo da União” a exploração de atividades lotéricas e a criação de novas loterias.
A tese que defendemos no STF, foi que, segundo a Constituição Federal de 1988, os estados possuem a prerrogativa de explorar competências materiais que não forem exclusivas da União; esta tônica normativa, também conhecida por “competência residual”, vide art. 25, §1º da CF, compõe a essência da forma federativa do estado brasileiro, e é indispensável para que se promova a descentralização do poder, bem como o seu exercício de forma independente e harmônica por todos entes submetidos à Constituição Federal da República.
Ao acolher nossos argumentos e fundamentos jurídicos, o Ministro relator desatacou uma distinção importante, que vale ser rememorada: não se confundem competência legislativa e competência material. De sorte que, embora se reconheça como privativo à União legislar sobre sorteios e consórcios – conforme pacificou a Súmula Vinculante n. 2 --, isto não afasta a competência administrativa dos estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua competência residual.
O voto do relator fixou nas suas razões de decidir (ratio decidendi) que os estados e o DF estão autorizados a explorar todas as modalidades lotéricas já previstas em legislação federal; este pronunciamento da Suprema Corte confere segurança jurídica às iniciativas dos entes federados e, consequentemente, aos contratos com a iniciativa privada (no caso da exploração indireta).
Em decorrência deste julgamento, relevante questão vem sendo debatida quanto à possibilidade de municípios aproveitarem a possibilidade de também explorarem as modalidades lotéricas. Com respeito às opiniões divergentes, nossa posição é de que isto não seria possível. Quando o voto do ministro relator afirma que “não pode lei federal impor a qualquer ente federativo restrição a exploração de serviço público para além daquelas já previstas no texto constitucional”, tal trecho deve ser lido com cautela e dentro de seu contexto. A referência a federativos se restringe aos estados e ao Distrito Federal, excluídos os municípios, posto que estes últimos detêm suas competências previstas de forma expressa na Constituição Federal, sem aproveitar a mesma lógica que assiste os estados e o Distrito Federal por meio da sistemática do art. 25, §1º.
A competência dos entes federados, sem incluir os municípios, não é novidade na legislação hodierna e nem na Constituição de 1988. Veja-se que tanto a Lei de Contravenções Penais de 1941, em seu art. 51, quanto o Decreto Lei 6259/44, art. 1º e seguintes, contemplam apenas os estados para o exercício do serviço público de Loterias.
A mesma dinâmica de distribuição de competências já estava presente na Constituição Federal de 1946 no art. 18. § 1ª e na Constituição Federal de 1967 no art. 13, §1º, assim como na atual Constituição Federal no art. 25, § 1º, onde fica expresso que “são reservados aos estados as competências que não lhe sejam vedadas por esta constituição”. Este trecho da Constituição não pode ser interpretado extensivamente aos municípios, pois “são reservados aos estados” tais competências.
Como bem definiu o relator: havia no Brasil uma tradição legislativa de reconhecer a exploração de loterias pelos estados, e o Decreto-Lei n. 204/67 constituiu uma exceção a esta constante; uma “ilha” normativa que, a bem da verdade, destoava da evolução histórica da matéria no país.
Ademais, se quisesse o constituinte de 1988 estabelecer aos municípios a mesma tônica normativa e sistemática que conferiu aos estados (competência residual), teria o feito de maneira expressa.
Nesse sentido, há que divergir da imprecisão do voto do Ministro Alexandre de Moraes. O voto, apesar de afirmar sua adesão ao voto do relator, destoa dos fundamentos deste ao dar a entender que aos municípios caberiam as mesmas competências atribuídas aos estados – competências que, entretanto, que não são previstas na Constituição Federal.
A interpretação deste acórdão deve levar em conta a ratio decidendi fixada ao final do voto do Ministro Gilmar Mendes, onde deixou expressa a seguinte premissa: “[iii.] a competência privativa da União para legislar [...] não preclui a competência material dos Estados para explorar as atividades lotéricas nem a competência regulamentar dessa exploração”. Onde se lê “estados” neste ponto do voto, permite-se ler também “Distrito Federal” por força do art. 32, §1º da Constituição Federal – o que não pode ser dito com relação aos Municípios. Portanto, nos parece temerária aventura jurídica qualquer iniciativa de criação de loteria municipal.
Devemos nos pautar nas razões de decidir anunciadas no voto condutor do relator, até porque todos demais ministros acompanharam o respectivo voto, de cujo acórdão do julgamento sequer comporta recurso com efeito devolutivo, sendo previsto apenas eventuais embargos de declaração.
Além disso, referente a questão dos municípios, tal matéria já foi objeto recente de apreciação pela Suprema Corte, no julgamento da ADPF 337/STF, sem desconhecer que o fundamento daquela decisão tenha sido pautada no famigerado, agora inválido DL 204/67.
A importância prática deste julgamento é a descentralização do poder, que vinha sendo inconstitucionalmente extraído dos estados desde 1967. Com a retomada desta tradicional prerrogativa dos estados, permite-se por meio das loterias fomentar importantíssimas receitas diretas e, portanto, promover direitos fundamentais a nível estadual, em especial de natureza social, além de outros benefícios secundários tais como o controle da oferta de produtos, integridade do esporte, controle fiscal da destinação de recursos e da proteção a ludopatia.
Cabe aos estados e aos empresários que desejarem investir neste setor, a responsabilidade pelas próximas iniciativas para que seja o potencial econômico e social deste novo mercado aproveitado da maneira mais eficiente, republicana e cidadã na persecução das finalidades sociais das loterias.
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