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Foto do escritorAlexandre Amaral Filho

Um olhar jurídico sobre o interessante “Um ato de Esperança”.

Uma recomendação de filme (sem spoilers).


“Esta é uma Corte de Justiça, não de moral”.


Provavelmente esta pode ser considerada a premissa principal que media os conflitos pelos quais passa a protagonista de “Um ato de Esperança” (Chidren’s Act, 2017, Reino Unido).


O filme tem como personagem central a juíza Fiona Maye, que julga casos complexos envolvendo Direito de Família na Inglaterra. A trama gira em torno do dilema apresentado pelo caso de Adam, um adolescente de dezessete anos com leucemia que, mesmo diante da recomendação médica para realização de transfusão de sangue, permanece fiel a um dogma de sua religião (Testemunha de Jeová), que considera o sangue como “a vida em si”, cuja “mistura” seria um desrespeito a Deus enquanto o provedor da vida. Seus pais – e toda comunidade religiosa onde está inserido – apoiam a decisão.




De maneira sucinta, pode-se dizer que é um caso onde há uma colisão de direitos fundamentais. O conflito envolve a liberdade de religião por um lado e a necessidade de proteção da vida por outro. Outra forma de apresentar a questão é o caminho que vai desde o “paternalismo médico” e a plena “autonomia do paciente” [1].


Os argumentos lançados no tribunal durante a película são equilibrados e ilustram bem o conflito. Por um momento, o espectador é levado a considerar, de um lado, tanto a convicção fervorosa de Adam em sua liberdade religiosa e o amor demonstrado por seus pais, quanto a alegação de que há métodos alternativos a tratamento com transfusão sanguínea para lidar com a doença do jovem, além dos riscos inerentes ao procedimento (doenças como AIDS, hepatite, etc)[2]. Por outro lado, a afirmação peremptória dos médicos de que a dispensa do tratamento levará Adam a uma morte cruel e dolorosa desperta no espectador a dúvida sobre o quão consciente está o paciente de sua escolha. Além disso, o Adam expressa estar consciente de que a punição da comunidade religiosa para com o descumprimento do dogma é a “desassociação”: a total exclusão social do apóstata.


Neste sentido, um outro ponto que a obra consegue ilustrar bem é o do questionamento acerca de um consentimento genuíno[3] de Adam para interromper o tratamento de transfusão sanguínea. Segundo Luis Roberto Barroso em parecer sobre o tema, este consentimento nos casos de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová deve ser válido, inequívoco, livre e informado.


Portanto, para além do questionamento sobre se a opinião de um menor de idade seria necessariamente “inequívoco” (por sua tenra idade) ou mesmo “válido” (por sua hipossuficiência) a influência da religião na formação da identidade do paciente nos leva a perguntar se a escolha do personagem é, de fato, “livre” e de fato “bem informada”.


A tônica legalista que juíza Fiona adota (de tentar separar direito e moral para julgar: “this is a Court of justice; not of morals”) deve-nos remeter não à pergunta ”será o direito suficiente para resolver?”, mas sim a “qual as formas mais adequadas de resolver dentro do direito?"; ou: "quais os critérios a serem atendidos pelo julgador?”.


Neste sentido, deve-se destacar a tese “Direitos Fundamentais Indisponíveis – os Limites e os Padrões do Consentimento para a Autolimitação Do Direito Fundamental à Vida”, da jurista Letícia Martel (vencedora do prêmio CAPES). Em sua conclusão, o trabalho aborda a possibilidade de haver um “consentimento genuíno” para o que ela chama de “Limitação Consentida de Tratamento”. Ao se debruçar sobre a possibilidade, a autora defende diretrizes básicas para se verificar a “genuinidade” de uma escolha tão importante; transcreve-se:


“(a) verificação da origem da decisão e da maturidade da manifestação por profissionais habilitados, após o adequado processo de informação; (b) confirmação do diagnóstico e do prognóstico; (c) verificação da inocorrência de depressão tratável; (d) verificação da adequação dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos; (e) verificação de eventuais conflitos de interesses entre a instituição hospitalar, a equipe de saúde e os interesses dos pacientes e de seus responsáveis; (f) garantia de assistência plena, se desejada, e verificação da inexistência de conflitos econômicos; (g) verificação da inexistência de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou representantes; (h) debate dos casos e condutas por Comitês Hospitalares de Bioética, quando ainda não houver posicionamento em situações análogas; (i) formulação de TCLE [“Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”] específico.”[4]


A partir destes critérios, pensamos que a aproximação do estudioso do direito com o filme se torna bastante interessante, principalmente na divertida tentativa do espectador antecipar qual será a decisão da protagonista em seu julgamento (o que ocorre mais ou menos na metade do filme). A despeito do tom dramático (e menos jurídico) o que eventualmente a obra assume da metade pra frente, assistir a “Um Ato de Esperança” é garantia de um proveitoso entretenimento, não apenas pela qualidade da aproximação com o tema jurídico, quanto pela excelente atuação de Emma Thompson no papel principal.


[1] Em parecer que trata da análise do Código de Ética Médica e o caso da transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, Luis Roberto Barroso, assentado em vários pontos na tese de doutorado de Letícia Campos Velho Martel, conclui que a o Código do Conselho Federal de Medicina permite a liberdade de escolha do paciente – o que não ocorre com relação a res. 139/99 do CREMERJ, que chancela ao médico a possibilidade de realização forçada em caso de risco iminente à vida. Sobre isso, consultar: “Legitimidade Da Recusa De Transfusão De Sangue Por Testemunhas De Jeová, Dignidade Humana, Liberdade Religiosa E Escolhas Existenciais”. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/dl/testemunhas-jeova-sangue.pdf>


[2] Segundo o site oficial da JW.Org, a proibição da transfusão de sangue é um dogma assentado em passagens do velho e do novo testamento: Gênesis 9:4, Levítico 17:10, Deuteronômio 12:23, Atos 15:28 e Levítico 17:14. E.g., em Levítico 17:14: “Pois a vida de todo tipo de criatura é seu sangue, porque a vida está no sangue. Por isso eu disse aos israelitas: ‘Não comam o sangue de nenhuma criatura, porque a vida de todas as criatura é seu sangue. Quem o comer será eliminado.’” Disponível em: <https://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/perguntas-frequentes/por-que-testemunhas-jeova-nao-transfusao-sangue/>


[3] Para aprofundar o tema, recomenda-se a obra “Direitos Fundamentais Indisponíveis – os Limites e os Padrões do Consentimento para a Autolimitação Do Direito Fundamental à Vida” de Letícia Campos Velho Martel, vencedora do prêmio CAPES de melhor tese de doutorado. A obra teve como hipótese: “[a]pesar de ser justificável, em linha de princípio, que um sistema jurídico repute o direito à vida indisponível, poderá ocorrer a autolimitação, mediante consentimento genuíno, quando associada a determinadas condicionantes de fato e de direito”. A tese da autora beneficiou em larga parte um parecer do Prof. Luis Roberto Barroso também citado neste breve artigo. Disponível em: < http://pct.capes.gov.br/teses/2010/31004016015P4/TES.PDF>


[4] Idem, p. 428.

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