A proibição do amianto no Brasil está de volta à pauta. No último domingo (12/05/2019) uma matéria do Fantástico (Rede Globo) tratou sobre a visita de senadores à mina de amianto de Minaçu - GO e os impactos econômicos que a proibição total da exploração e uso do minério causaram à cidade. Considerada a maior mina de amianto da América Latina, a jazida é explorada pela SEMA, a qual possui um monopólio “de fato” no país.

Mesmo em sua variedade “menos nociva” (amianto crisotila), o amianto é considerado pela OMS um dos agentes mais cancerígenos no ambiente do trabalho, sendo responsável por doenças como a asbestose e o mesotelioma (tipo de câncer relacionado às fibras do material)[1]. A Lei 9.055/98 estabeleceu a regra do banimento geral do amianto no país, excetuando apenas o uso da crisotila – isto é, determinou um “uso controlado”[2].
A lei federal foi considerada inconstitucional pelo STF e a exploração e uso do minério ficaram proibidos no país desde novembro de 2017. Os efeitos da proibição foram contidos por uma liminar na ADI 3470 que, na prática, permitiu a exploração do amianto até fevereiro deste ano[3].
Segundo adiantou o sen. Vanderlan Cardoso (relator da comissão que investiga os efeitos da proibição sobre a economia da cidade e sobre os funcionários da SEMA), será requerida a reabertura da mina, fechada desde fevereiro: “Os funcionários tão apreensivos, a cidades está apreensiva; então nós temos que reabrir urgente [...]”. O senador afirma que a decisão do STF foi equivocada e tomada sem base científica, por isso pedirão à corte “apenas a exportação do amianto” e “um período de transição de 10 anos”[4]. Segundo declarou o prefeito de Minaçu, Zilmar Duarte, o amianto representa mais de 30% da receita do município.[5]
Tais fatos é que justificam revisitar, ainda que brevemente, os argumentos centrais e fundamento da decisão da nossa corte suprema.
A controvérsia judicial teve início em meados dos anos 2000 quando leis estaduais proibitivas colocaram-se contrárias ao “uso controlado” chancelado pela lei federal; somadas à ADI 4066 (a qual questionou a própria lei 9.055/98), os julgamentos das ADIs estaduais contra as leis proibitivas (portanto favoráveis à exploração e uso do amianto) foram preponderantes para consolidar o posicionamento atual do STF[6].
Num primeiro momento, o STF ateve-se à questão da competência legislativa dos estados para contrapor-se à lei federal (constitucionalidade formal). O tribunal deixara de se pronunciar quanto ao dever de fornecer proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado (constitucionalidade material) por entender que não deveria adentrar em questões “técnico-científicas”[7]. Entretanto, em 2017, tendo em vista o avanço das pesquisas e a manifestação de especialistas por meio de amicus curiae e audiências públicas[8], os Ministros reviram o posicionamento da Corte[9] e trataram sobre (a) a proteção a um meio ambiente equilibrado, (b) princípios da precaução e prevenção e (c) normatividade de tratados internacionais em matéria ambiental.
O fundamento preponderante para o deslinde da questão foi o princípio da precaução. Segundo destacou o Min. Celso de Mello, a proteção ao meio ambiente deve levar em conta“(a) a precaução diante e incertezas científicas, (b) a exploração de alternativas a ações potencialmente prejudiciais, inclusive a da não ação, (iii) a transferência do ônus da prova aos seus proponentes, e não às vítimas ou possíveis vítimas”[10].
Portanto, o princípio da precaução promove a premissa de que “a dúvida científica milita a favor do meio ambiente”. Nesse sentido, o ministro concluiu:
“Com efeito, e mesmo que se apresentasse insuficiente a certeza científica quanto à nocividade do uso controlado do amianto crisotila, ainda assim – é importante insistir – o princípio da precaução, que tem suporte em nosso ordenamento interno (CF, art. 225, § 1º, V, e Lei nº 11.105/2005, art. 1º, “caput”) e, também, em declarações internacionais (como a Agenda 21, Princípio 15, que resultou da Conferência do Rio/92), incidirá, como advertem doutrina e jurisprudência, sempre que houver probabilidade de concretização de dano em consequência de atividade identificada por sua potencialidade lesiva. Caso tal ocorra, impor-se-á, então, ao Poder Público, com apoio em referido postulado, a adoção de medidas de índole cautelar destinadas a preservar a incolumidade do meio ambiente e a proteger, desse modo, a integridade da vida e da saúde humanas.”
“Entendo, na perspectiva dessa importantíssima evolução, que questões que envolvam e comprometam o meio ambiente e a saúde pública não podem subordinar-se a interesses de índole corporativa ou de caráter econômico, pois, segundo o postulado da precaução, “as pessoas e o seu ambiente devem ter em seu favor o benefício da dúvida, quando haja incerteza sobre se uma dada ação os vai prejudicar”, vale dizer, se dúvida houver a propósito da nocividade ou periculosidade de um dado elemento ou de certa atividade, não haverá solução outra senão a de decidir-se favoravelmente à preservação do meio ambiente (“in dubio pro securitate”). [...]Tenho para mim, bem por isso, que o postulado da precaução atua, no contexto ora em exame, como claro fator de deslegitimação do diploma legislativo em causa, que, de modo incompatível com a Constituição, desconsiderou a nocividade real do uso, mesmo controlado, do amianto crisotila.[11]”
Lembrando das contribuições em audiência pública, a Min. Rosa Weber destacou:
“Por sua vez, ouvido o médico René Mendes, professor e especialista em saúde pública e em medicina do trabalho que falou em nome da Associação Nacional de Medicina do Trabalho e da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto, ele mencionou que não se pode falar em uso seguro ou uso controlado do amianto, pois ‘não existem limites de tolerância’.[12]”
O princípio do in dubio pro natura (decorrente do princípio da precaução) vem sendo bastante usado também nos julgados do Superior Tribunal de Justiça na solução de conflitos e interpretação de leis em matéria ambiental – protegendo a parte mais vulnerável na dinâmica de distribuição probatória, inclusive promovendo a inversão do ônus da prova[13].
Portanto, nota-se que a decisão do STF, mais que simplesmente repetir o consenso científico, ponderou que, a partir do princípio da precaução, há a necessidade de o empreendedor (no caso, aqueles a favor da inconstitucionalidade das leis estaduais e a favor da constitucionalidade do uso controlado do amianto crisotila) provar que efetivamente não há risco à saúde humana a exploração do material com o uso controlado.
Com o fim dos efeitos da liminar concedida para a exploração do minério, é certo que os senadores pedirão ao STF novo prazo para que haja adequação à proibição – provavelmente, um prazo de dez anos, restrito para a exportação do material para países onde ainda se permite o uso (como China, Rússia e Estados Unidos.).
No entanto, a despeito de todos os condicionantes econômicos que naturalmente influem nos debates sobre o desenvolvimento sustentável (isto é, sobre a importância econômica da exploração do amianto à cidade de Minaçu), há que se concluir que, ao menos se se considerar a regra do ônus probatório no âmbito da proteção ao meio ambiente, caberá exclusivamente aos senadores comprovarem que a exportação e o período de transição de 10 anos não exporá os trabalhadores ao relevante risco de contaminação pelo minério (incluindo-se aí todos os trabalhadores envolvidos na cadeia do amianto: desde os empregados da SEMA em Minaçu, aos transportadores da carga e trabalhadores portuários).
Alexandre Amaral Filho é advogado, especialista em Direito Constitucional pela ABDConst - PR e pós-graduando em Direito da Aduana pela Univali – SC.
[1] OMS. Relatório sobre o Amianto Crisotila. In: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/143649/9789248564819-por.pdf;jsessionid=6746211A619A9FCE2EF244B76788022E?sequence=17 . Acesso em: 10/01/2019.
[2] “Art. 1º É vedada em todo o território nacional: I - a extração, produção, industrialização, utilização e comercialização da actinolita, amosita (asbesto marrom), antofilita, crocidolita (amianto azul) e da tremolita, variedades minerais pertencentes ao grupo dos anfibólios, bem como dos produtos que contenham estas substâncias minerais; [...] Art. 2º O asbesto/amianto da variedade crisotila (asbesto branco), do grupo dos minerais das serpentinas, e as demais fibras, naturais e artificiais de qualquer origem, utilizadas para o mesmo fim, serão extraídas, industrializadas, utilizadas e comercializadas em consonância com as disposições desta Lei.”
[3] Há uma peculiaridade sobre Processo Constitucional neste caso. A ADI4066, que julgou a inconstitucionalidade da lei 9.055, foi julgada procedente mas não atingiu o quórum necessário para pronuncia da inconstitucionalidade. Por conta disso, somente durante o julgamento da ADI 3.470 três meses depois (que julgava a constitucionalidade de uma lei estadual proibitiva do amianto) que se decidiu, em sede incidental, sobre a inconstitucionalidade da lei federal. Por questão de segurança jurídica, o STF entendeu necessário aplicar a extensão dos efeitos erga omnes – abstrativizando os efeitos da decisão tomada em controle difuso (o que, inclusive, reavivou a discussão acerca da mutação constitucional do art. 52, X da CRFB/88. Sobre isso, conferir: CAVALCANTE, Bruno R. A teoria da abstrativização no controle difuso. JOTA. https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/teoria-da-abstrativizacao-no-controle-difuso-12012018). É por isso que se decidiu na ADI 3470 os efeitos da proibição do amianto, efetivamente. Pois bem. A decisão monocrática da Min. Rosa Weber na ADI 3470 ponderou que, por conta do não pronunciamento do STF sobre a modulação de efeitos (se ex-nunc ou ex-tunc, ou se a pronúncia de inconstitucionalidade poderia gerar prejuízos), poderia, em sede de julgamento de Embargos de Declaração, a corte relativizar os efeitos da proibição. Por conta disso, a Ministra entendeu ser possível não aplicar os efeitos erga omnes pelo menos até exaurir o prazo de Embargos de Declaração. Em fevereiro o prazo se encerrou. Destaca-se: “Ante o exposto, tendo em conta os aspectos invocados pela autora, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), e pelo amicus curiae Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC) na petição nº 76137/2017, recebida em 11.12.2017, a fim de evitar dano grave e de difícil reparação, defiro, forte no poder geral de cautela e nos moldes dos arts. 297, 932, II, 995, parágrafo único, e 1.026, § 1º, do CPC/2015, o pedido de tutela de urgência ora veiculado para suspender, em parte, os efeitos da decisão, apenas no ponto em que se atribuiu eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 9.055/1995, até a publicação do acórdão respetivo e fluência do prazo para oposição dos aventados embargos de declaração.”
[4] Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/senadores-querem-que-stf-autorize-exportacao-do-amianto-23638068.
[5] Fantástico, Rede Globo. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/05/12/funcionarios-protestam-pela-reabertura-de-mina-de-amianto-em-go-minerio-que-pode-provocar-cancer.ghtml.
[6] Quanto às ações ajuizadas contra leis estaduais proibitivas, são elas: ADI 2656, ajuizada contra lei estadual de São Paulo, n. 10.813/2001; ADI 3406 e 3470, ajuizadas contra a lei estadual 3.579/2001, do Rio de Janeiro; ADI 3937, a qual questionava lei estadual n. 12.684/2007, do estado de São Paulo; ADPF 109, contra lei Municipal 13.113/2001, da cidade de São Paulo; ADI 3356, contra lei estadual n. 12.589/2004, de Pernambuco; e ADI 3357, contra lei estadual n. 11.643/2001, do Rio Grande do Sul.
[7] Conforme colhe-se da decisão na ADI 2396-9, ajuizada contra a lei n.2.210/01, do estado do Mato Grosso do Sul, “[n]ão cabe a esta Corte dar a última palavra a respeito das propriedades técnico-científicas do elemento em questão e dos riscos de sua utilização para a saúde da população. Os estudos nesta seara prosseguem e suas conclusões deverão nortear as ações das ações das autoridades sanitárias. Competência do Supremo Tribunal Federal circunscrita à verificação da ocorrência de contraste inadmissível entre a lei em exame e o parâmetro constitucional” ADI 2396. 08/05/2003.
[8] A audiência púbica se deu no âmbito da ADI 3937, da qual o Min. Marco Aurélio foi relator. A audiência pública foi realizada em 24 de agosto de 2012 e contou com a presença de diversos expositores de ambas as vertentes (pró e contra o uso controlado do amianto).
[9] Conforme extrai-se do voto da Min. Rosa Weber, na ADI 4066: “[o]s dados e subsídios técnicos apresentados na audiência pública sobre os efeitos do amianto para a saúde, bem as contribuições desta natureza trazidas pelos amici curiae, referendam, no seu conjunto, a conclusão de que no estágio atual, o conhecimento científico acumulado permite afirmar, para além da dúvida razoável, a nocividade do amianto crisotila à saúde humana e ao meio ambiente”. ADI 4066.
[10] BRASIL. STF. ADI 4066. Relatora Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, em 24.8.2017. Voto do Min. Celso de Mello. P. 30
[11] BRASIL. STF. ADI 4066. Relatora Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, em 24.8.2017. Voto do Min. Celso de Mello. P. 30.
[12] BRASIL. STF. ADI 3470. Relatora Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, em 29.11.2017. p.46.
[13] Para citar um exemplo: no REsp 883.656 o Min. Hermann Benjamin explicou que a inversão do ônus da prova em face de uma empresa poluidora se fazia necessário dada a natureza indisponível do bem (meio ambiente ecologicamente equilibrado), exigindo uma atuação mais incisiva “para salvaguardar os interesses dos incontáveis sujeitos-ausentes, por vezes toda a humanidade e as gerações futuras [...] Por derradeiro, a incidência do princípio da precaução, ele próprio transmissor por excelência de inversão probatória, base do princípio in dubio pro natura, induz igual resultado na dinâmica da prova” . Disponível em: www.conjur.com.br/2019-mai/in-dubio-pro-natura-ganha-forca-superior-tribunal de-justica.
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